16.6.17

Agustina Bessa-Luís: Pessoa e amor

O sucesso da obra de Fernando Pessoa radica-se no vazio afectivo que a caracteriza. Não que fosse um homem destituído de desejos e considerandos que os perfilham. Mas está, como toda uma geração que o lê, ferido de certa irrealidade quanto ao amor, que começa pela admiração de si próprio, pela honra de ter nascido de mãe real e certa.
Um dia, uma mulher que o conheceu, no meio dos seus contemporâneos mais festivos e fazedores de blagues, disse-me: «Eu não gostava dele. Era sem graça.» O retrato que Almada traçou explica um pouco esse lado taciturno, severo mesmo, asceta quase. «Amo com o olhar, e não com a fantasia.» Não tem fantasmas a enriquecer-lhe o comportamento; a alma monótona que ele supõe em toda a gente é assim porque ele a não pode interessar e comover. O amor não é função. É exactamente o que Pessoa não concebe: viver com outra alma que não seja a dele. Pois que é amar senão inventar-se a gente noutros gostos e vontades? Perder o sentimento de existir e ser com delícia a condição de outro, com seus erros que nos convencem mais do que a perfeição?


Agustina Bessa-Luís, Dicionário imperfeito



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