12.3.17

Ser peso

No mesmo prédio, numa ala transversal, vê-se uma rapariga na cozinha; a mãe foi às compras, a rapariga está a escrever o diário à socapa, tem 26 anos, está desempregada. O último registo, de 10 de Julho, rezava assim: Desde ontem à tarde sinto-me outra vez melhor; mas os dias bons agora são tão poucos! Não posso desabafar com ninguém como eu queria. Por isso decidi-me a escrever tudo. Quando me vêm os ataques, não sou capaz de fazer nada, as mais pequenas ninharias causam-me grandes dificuldades. Nessas alturas, tudo o que vejo provoca em mim novos pensamentos e não consigo libertar-me deles, fico muito excitada e só dificilmente me consigo obrigar a fazer qualquer coisa. Um grande desassossego interior empurra-me para aqui e para acolá e, no entanto, não consigo levar nada até ao fim. Por exemplo: de manhã cedo, quando acordo, tomara não me levantar de todo; mas obrigo-me a isso e tento dar-me coragem. Mas logo o vestir implica um grande esforço e demora muito tempo, porque entretanto me passam outra vez pela cabeça montes de ideias. A ideia de fazer qualquer coisa ao contrário e vir depois a causar algum prejuízo não pára de me atormentar. Muitas vezes, quando ponho um bocado de carvão no fogão e alguma faúlha salta, fico toda assustada e depois examino-me toda a ver se nada pegou fogo e se dei cabo de alguma coisa, podia ter ateado um incêndio sem dar por isso. E depois é isto o dia inteiro; tudo o que tenho de fazer parece-me um autêntico peso e quando, apesar disso, me forço a fazê-lo, apesar do muito que me custa a fazê-lo depressa, demora tudo imenso tempo. Assim se vai passando o dia, e eu acabo por não fazer nada, porque em todos os afazeres fico imenso tempo perdida nos meus pensamentos. E quando depois, apesar de todo o esforço, não consigo sair-me bem na vida, fico desesperada e farto-me de chorar. Os meus ataques foram sempre deste género, começaram a aparecer no meu 12.º ano de vida. Os pais acharam sempre que era tudo fingimento. Aos 24 anos tentei pôr fim à vida por causa destes ataques, mas salvaram-me. Naquela altura não tinha ainda tido relações sexuais e punha nisso todas as minhas esperanças, infelizmente em vão. Sexo só tenho tido com conta, peso e medida, e nos últimos tempos já nem quero saber disso para nada, também porque me sinto fisicamente muito fraca.
14 de Agosto. De há uma semana para cá estou outra vez muito mal. Não sei o que vai ser de mim se isto continua assim. Acho que se não tivesse ninguém no mundo, não hesitaria em abrir a torneira do gás, mas assim não posso fazer uma coisa dessas à minha mãe. Mas desejo a sério ter uma doença grave da qual viesse a morrer. Escrevi tudo exactamente como sinto cá dentro.

Alfred Döblin, Berlin Alexanderplatz



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