4.9.16

Grande política e seus prejuízos


Tal como um povo não sofre os maiores prejuízos, que a guerra e a prontidão para a guerra acarretam, através das despesas de guerra, das estagnações no seu modo de viver, nem tão-pouco através da manutenção de um exército permanente — embora tais perdas sejam grandes também agora, quando oito Estados da Europa gastam com isso a soma de dois a três bilhões anuais —, mas sim com o facto de que ano a ano os homens mais capazes, mais vigorosos, mais trabalhadores são removidos em número extraordinário das suas ocupações e profissões, para se tornarem soldados: de igual modo, um povo que se dispõe a praticar a grande política e a garantir uma voz decisiva entre os Estados mais poderosos não experimenta as suas maiores perdas onde geralmente as encontramos. É verdade que a partir desse momento ele sacrifica muitos dos talentos mais eminentes no “altar da Pátria” ou da ambição nacional, quando previamente, antes de serem devorados pela política, esses talentos tinham outras esferas de acção diante de si. Mas além dessas hecatombes públicas, e, no fundo, bem mais tremendo que elas, dá-se um espectáculo que continuamente se desenrola em cem mil actos ao mesmo tempo: todo o homem capaz, trabalhador, inteligente, esforçado, pertencente a um povo ávido de glórias políticas, é dominado por essa avidez e não mais se dedica inteiramente ao seu próprio negócio: as questões e os cuidados relativos ao bem público, diariamente renovados, consomem um tributo diário do capital de coração e mente de todo o cidadão: a soma de todos esses sacrifícios e perdas de energia e trabalho individuais é tão gigantesca que o florescimento político de um povo quase necessariamente acarreta um empobrecimento e debilitação espiritual, uma menor capacidade para obras que exigem grande concentração e exclusividade. E enfim é lícito perguntar: vale a pena, então, toda essa prosperidade e esplendor do conjunto (que, no entanto, até só aparecem à luz do dia enquanto receio dos outros Estados perante o novo colosso e enquanto protecção, arrancada ao estrangeiro, da prosperidade nacional em matéria de comércio e comunicações), se a essa Flor da Nação, grosseira e cambiante, têm de ser sacrificadas todas as plantas e ervas mais nobres, delicadas e espirituais, de que, até então, o seu solo era tão rico?


 Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano

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