10.5.16

A partir de «Branco», de Krzysztof Kieslowski


Nesta relação, tem que haver igualdade. É a minha condição. Homem, mulher. Míseros mortais que tombam de cansaço à noite. É essa a nossa condição. Trabalhamos, caímos.

É preciso ainda ter medo, é o outro que nos salva da imbecilidade. É preciso não fugir do medo. A saída que possas ter ao medo não é grande coisa, chama-se envelhecer. Na tua cabeça continuarás imortal, com tudo por fazer. Um dia ficarás doente – e pronto, acabou. Ou então podes reconhecer a importância do medo, se a natureza for piedosa.

Voltaste a casa, roubaste. Quiseste impor ao outro as regras: só se sofrermos o mesmo podemos estar juntos. Antes isso que uma vida passada a roubar e a enganar e a passear altivez, a fazer de conta que é isso que queres para ti. É claro que antes de enganares os outros, é a ti que enganas. Antes e depois, na contabilidade da tua vida que mais importa. Homem, mulher. Desigualdade há sempre. Homem, homem. Mulher, mulher. Cada ser funda a sua própria espécie. Não há igualdade.

Obtuso entras pelo rancor adentro para provares a ti próprio que não és impotente. Sê-lo-ás sempre se julgas que o amor salva. Não salva, é uma embriaguez ao início, até se converter imperceptivelmente em convívio com a estranheza. Que começa em ti, e só depois parecerá alastrar ao outro. O que é muito bom, se fores humilde e recusares continuar a ser o quadrado exacto que agora és. Alguns raros ainda vão fundo no amor. E depois redescobrem mundo além do que haviam idealizado.

Quiseste que o outro passasse pelo mesmo que tu – mas não sabias que não sofremos o mesmo que os outros, ainda que tenhamos atravessado por experiências análogas? No limite, cada um lida sozinho com a sua dor. A dor é inevitavelmente incomunicável. Dor só sentes a tua, e muito mal a sabes. As pessoas que amas ouvem-te, acreditam em ti. Mas não a sabem, muito menos a sofrem por ti, nem poderiam fazê-lo, nem tenhas a petulância ignara de lho exigires. Nunca estarás no mesmo plano que o outro, deixa que te avise. Nunca deixarás de sofrer. Mas precisavas que o outro sofresse para saberes que outros sofrem. É que nunca o outro te conseguirá comprovar o seu sofrimento. O outro que parece chorar como tu nunca chorará como tu choras. Ser mortal é sofrer, antes isso do que seres um deus a preguiçar o seu tempo (o qual, de certo ponto de vista, nem existirá verdadeiramente para ele).

Para além disso, não há metade nenhuma que te falte. Tu és tudo na tua inexorável incompletude. Há os outros com quem tens que te relacionar, conviver, ligar. Há também mundo a construir, porque és humano, é essa a tua tarefa. Continuar, cuidar, fazer. Os filhos provar-te-ão que nunca tiveram pais, serão o que necessariamente sempre foram. A tua obra viverá para além do destino que lhe traçaste. Mas isso nem importa para o caso. Faz-se, cuida-se, continua-se.

Não vale a pena quereres compreender o outro, esse com quem vives os teus dias. Muito em ti e no outro ainda te surpreenderá desconhecer, o que é muito bom. E é só, não penses mais nisso. Avança.

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