31.12.15

O que conta é o precipício

Em 2015, editou-se Arrancar penas a um canto de cisne, que reúne a produção poética de vinte anos de Luís Quintais. Reunir uma obra é um primeiro passo na candidatura de um poeta ao cânone. Há não muito tempo, editar uma Obra Reunida era não só mais rentável como permitia às editoras valorar simbolicamente os seus poetas. Mais rentável não significa que fosse rentável em todos os casos, longe disso. Editar uma Obra Reunida tem residuais efeitos no mercado, mas dentro do campo literário cumpre, pelo menos, estes objectivos: permite avaliar um percurso poético e aferir a sua relevância no panorama actual da poesia portuguesa, lançando ainda bases para um debate sobre os seus possíveis caminhos futuros. Funciona, pois, como um crivo: nuns casos, confirma o valor presente e futuro da obra; noutros, deixa perceber que não só a obra como os seus postulados terão chegado a um impasse. O caso de Luís Quintais corresponde à primeira hipótese: Arrancar penas a um canto de cisne é uma clareira de reflexão importante para se imaginar o que pode ser a poesia portuguesa no futuro.
Luís Quintais iniciou a sua aventura poética com uma imprecisa melancolia, progredindo pela inquirição das suas causas – a modernidade. Arrancar penas a um canto de cisne (com um posfácio instigante de Pedro Eiras) mobiliza muita cultura, dialogando com Ludwig Wittgenstein ou Walter Benjamin, com antropólogos como Lévi-Strauss ou Dan Sperber, ou com mestres do modernismo, como Wallace Stevens (de quem traduziu, neste ano, O homem da viola azul, com chancela da Guilhotina), T. S. Eliot ou Ezra Pound, para além de reflectir, entre intempestividade e melancolia, sobre canções de Bob Dylan ou de algum prodigioso intérprete dos blues, sobre Paul Klee ou Ingmar Bergman.
Versos densos e elusivos (como salientou Osvaldo Silvestre), como pancadas secas, com um vocabulário rútilo, de uso contido, um epitáfio pelo esboroamento da aura na modernidade. A este propósito, escreve-se em “Morte caligráfica”, de Angst, poema em prosa sobre um planalto devastado e uma oliveira desaparecida: “Teria que fazer o meu trabalho de luto, não por escrúpulo ecologista, que não tinha, mas por morte de símbolos de que o planalto e a pequena árvore – a imaginada oliveira – teria sido o último dos exemplos.” O poeta faz um inquietante, lúcido e erudito diagnóstico da modernidade – das suas feridas, dos seus desastres – retomando de alguma maneira António Franco Alexandre, o expoente máximo da geração anterior no que a esta investigação diz respeito (existem várias diferenças entre as poéticas de ambos, ressalve-se). Acrescem reflexões estimulantes sobre o ser humano, colocado no limiar animal (em 2007, Luís Quintais prefaciou Regras para o parque humano de Peter Sloterdijk, filósofo que nesta obra escreveu que “o humano [é] o ser que fracassou no seu ser-animal e no seu manter-se animal”), a exemplo do poema “Natureza” de Mais espesso que água: “Humanos? / Qual a diferença, / a ínfima dobra, / que faz a diferença?”
Os seus poemas, por vezes, parecem desejar reinvestir-se de energia, aura e beleza, a exemplo do que ocorre, mutatis mutandis, na escultura de Rui Chafes (sobre quem Luís Quintais editou recentemente uma colectânea de ensaios intitulada Exúvia, gelo e morte. A arte de Rui Chafes depois do fim da arte), caso tardio da voracidade vertical do romantismo alemão. Lanço uma questão, de que não sei a resposta: este repto de um passado aurático não é abraçado entusiasticamente devido à infiltração da melancolia, ou ao não se decidir a ir a fundo nela, como o escultor? Ou será que essa inclinação para um caminho alternativo nunca se manifesta, sendo uma das armadilhas em que este leitor caiu? Talvez parte dessa resposta conste dos seguintes versos de O vidro: “Abrem-se portadas e és ofuscado pelo // brilho do passado, e caminhas / para ele sem acreditar em nada que não seja // já estilhaço.” Um estilhaço de aura, pois – que seja, esse pouco. A atracção por esse mundo alternativo parece assim curto-circuitada pela verve analítica do poeta – um igualmente meticuloso e poético ensaísta – firmada na revolução linguístico-filosófica que no modernismo se operou e consequente impossibilidade da metafísica.
A linguagem do poeta é muito consciente, pois, do que separa os signos do mundo e da nossa experiência (poesia moderna, portanto). Os poemas dizem a sua experiência de uma forma vigiada. E todavia, a experiência é-nos subtraída não somente por questões de ordem linguística, em resultado outrossim do que de mais terrível ocorreu no século XX, como assinalou Benjamin no célebre ensaio “Experiência e indigência”. A este propósito, constate-se como a inevitabilidade do “balbuciar” – resultado da experiência pobre e impartilhável, como a dos homens regressados da guerra no ensaio de Benjamin –, formulada por Paul Celan, parece glosada nos versos, dedicados (infere-se) a Gastão Cruz, de “Poesia Moderna”, (incluído em Depois da música): “Todas as línguas do mundo se sujaram. / Fomos condenados à gaguez triunfal / pela qual procuramos ainda dizer o que nos recusaram.” Dizer pouco, de forma clara, numa sintaxe ordenada, sabendo no entanto que se o diz incompletamente. Ou melhor, diz-se de forma aparentemente clara, diz-se afinal outra coisa, incoincidência fundamental em poemas conscientes da sua ficcionalidade: “não fosse o dito o modo de turvar // o acontecido”, dizem versos da primeira parte homónima de O vidro. Pallaksch, pallaksch. Acede-se, portanto, somente a “um resíduo da experiência” (“Voz, vento, ferrugem”, Duelo) – a imagem sobre que o poema se dobrará. Balbucio. E erro, falha, o que explica o desemprego dos poetas: “Os poetas vão ficar no desemprego, em breve”, substituídos por “algoritmos sem erro” (“1922”, Depois da música). Os algoritmos vão ocupar o lugar do erro, um tempo que despreza o que não é útil, vidro transparente, exactidão. A poesia não acerta no alvo, é um deslize imparável de sentidos. Mais do que tornar claro, a linguagem obnubila, metamorfoseia a experiência, origina equívocos, erros – criação, afinal. Por isso este tempo a repele, tempo que não tolera o imprevisível, nem o que não é senão fim em si mesmo – o jogo: “Tudo é jogo e música, afinal pouca coisa” (“O vidro”).
No título da obra, “Arrancar penas” diz de uma violência – exercida não sobre uma ave, mas sobre o seu canto. Como que privando a ave do seu lirismo – desencantando-a. “Arrancar penas a um canto” é uma anomalia semântica, por onde os poemas caem, entre tropo e torpor. O mais belo canto de cisne, desde Sócrates, anuncia a morte (ao longo dos séculos, procurou-se arrancar penas (sofrimentos) a um fabuloso canto de cisne). Desvincular-se, pois, da morte e do belo – arrancar penas é resistir ao vazio da modernidade, uma outra forma de prosseguir a invectiva aos cisnes de Wallace Stevens. Desta forma, como vincado com força na imagem vívida e inquietante de “Uma inocência”, parte de Angst, a poesia tem por tarefa remir o negro plástico, é o palco de um combate ético-poético com o Ersatz: “O que faz a poesia? / Remir e remir e remir / como as asas espancando // o negro plástico, flap, flap, flap.” Ou, pelo contrário, é a modernidade quem arranca penas à esperança – esse “animal com penas”, como o descreve a prosa de um poema de Duelo? De uma maneira ou de outra, é no tempo “sem rima” do depois que estamos, como assinala “Imagens” de Depois da música: “Ferida está a face dos livros pela luz. / O mundo é já sem rima. / Os versos sucedem-se sem ordem. / As ruínas são ameaçadas / pelo som de quem as devolve / somente como imagens / dentro de imagens.” A luz – a razão, as luzes do mercado – fere os livros. O século XX foi um caso de excesso de luz, ou de razão mal dirigida, mais precisamente – e um produtor de ruínas. E de memória – ameaçada pelo som de imagens dentro de imagens, pelo ruído de um torvelinho de imagens, que se anulam mutuamente, impondo as actuais. Os livros são feridos pela luz – das imagens.
Em suma, a proposta poética de Luís Quintais problematiza a herança modernista, renova a reflexão humanista, aponta as aporias da modernidade, convoca outras artes, é um testemunho pensado do nosso tempo. A poesia deve fazer-se, dizem os versos de “Precipício”, de Angst, contra a doxa herdada, afundando-se sem reservas no desconhecido, a linguagem por vir: “As imagens gastas de tão lidas / e os sofisticados lugares comuns da poesia / colam-se-te à pele – pelo incómodo trajo do bom senso / e do bom gosto que repudias. / Vil chegada do que amaste, e que agora recordas. // A poesia faz-se contra o esquecimento? / Melhor seria dizer, contra a memória se faz a poesia. // Sem a arruinada ponte não há precipício? / O que conta é o precipício além da arruinada ponte.”




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