31.12.15

Neste dia lembro-me sempre dos zombies do Romero

Que contemplavam embasbacados o fogo de artifício. Sobre George Romero, o que melhor foi escrito em português (pelo menos) julgo terem sido as páginas de Américo Lindeza Diogo. Num ensaio em que também se fala sobre Lucio Fulci ou Dario Argento.

Eis a parte final desse ensaio publicado há uns anos na Diacrítica sobre o marxista Land of the dead: exercício desconstructivo da ideologia do estético, a pertença a uma comunidade orgânica, unida em sensibilidade pelo belo kantiano.



«Os «fétidos» têm uma relação especial com o fogo de artifício. Não conseguem não olhar. Para facilitar as incursões em busca de alimentos e de bens, os minutemen usam o fogo de artifício. Os zombies ficam enlevados, a mirar ao alto aquelas flores do transcendente, desligado o motor do apetite e sem cuidados de sobrevivência. É assim que numa grande festa de cowboys bêbedos, os mercenários de Cholo entram pela rua principal. Primeiro, gritos, risadas, disparos a esmo, cavalgada; depois, tiro ao alvo, que é boneco.
Os «fétidos» acreditam na arte, e talvez mais do que o fetichista acredita no seu objecto de favor. Os espectadores de cinema, e caracteristicamente deste tipo de cinema, são notoriamente semelhantes aos «fétidos». Gore ajudando, o cinema será tão apparition (cf. Adorno, Teoria estética) como o fogo de artifício que maravilha os «fétidos». O fogo de artifício (que se abre de pura adequação a ficar-se olhando, e logo após se extingue) e o cinema (que continua a atracção que fora na raiz, e, quando continue, não consente que se sinta o tempo passar) serão eventos empíricos porque surgem no negrume, não provocados, calculados ou intencionados por quem olha – e ambos, a seu modo, transferências para uma luz-no-escuro do peso da empiria, que o elimina, sendo completa a alquimia pela «efemeridade». Terror cinemático e flores celestes conseguem a proeza duvidosa de uma arte cívica, criadora de uma comunidade que é unanimidade contemplativa, a vários respeitos desinteressada, em que se está à mercê de algum belo, e, finalmente, se fica à mercê. Sem reacção, expostos e república (vêm para a rua, que é demos), os «fétidos» são agora um alvo fácil de abater. A cena é «lírica» (ou «pungente», ou «sentimental»), graças à ingenuidade dos mortos-vivos conduzidos ao despropósito da atitude pastoral num mundo em guerra. Os «fétidos» são crianças grandes ou adultos retardados (uma personagem dos humanos, um tanto débil mental, tem no filme a função, entre outras, de estabelecer e substanciar esta comparação). É justamente quando se entregam à contemplação estética que os zombies fazem deveras jus ao nome.
Esta aparição da arte pelos derrelictos da arte é singularmente catastrófica. Aqueles que sobrevivem mortos no instante eterno em que deixaram de ser, e que levam consigo os restos de uma identidade e de uma teleologia, significando tal obsolescência que agora são ou oprimidos, ou «poetas», ou «poéticos» (o funcionário com a pasta, a cheerleader de mini-saia, o magarefe com o cutelo, o que foi às compras com o carrinho de super-mercado, o empregado do posto de gasolina com o fato-macaco do ofício, a estudante universitária, etc.), não são apenas imitação da vida, porém ainda imitação da arte pela espiritualização dela, posto seja isto circo e luminárias. A enumeração caótica que arregimentaria porventura um belo por negação da função (e a geringonça é mais Lautréamont do que a reunião do guarda-chuva e da máquina de costura na mesa de anatomia!) fica regimento do belo espiritual, se não é que imitam todos, como estrelas, as lágrimas de artifício. Olham o céu acima, boca aberta, bem kantistas; a velha é menos deste mundo, a despegar-se do corpo pelo pescoço; e o que ficou por acidente reduzido à cabeça abandonou de todo os baixos corporais, que serão prosa. A cheerleader protagoniza o mais convincente dos instantes florais, quando é abatida pela lança do cavaleiro motard. É graça, e pura quanto mais macabra e mecânica. A imagem é do ballet de marionetas (Kleist) e de boneca de Quebra-Nozes; pés e braços para fora, segue com a corda toda; ferida na fronte, como um pino, cai rodopiando; e no rodopio da queda recupera da força externa que a tombou o ponto fixo que é a sua motivação interna.
Com intermitências de perplexidade e muito esforço mental, o líder que surgiu desta «comunidade inconfessável» – negro como fora o daquela que se defendia contra os zombies em Night of the Living Dead – descobre a armadilha do belo que sacia inteiramente os que transformou em anorécticos; inconformado com a passividade do seu «povo», vai derrubando os estetas expostos, um por um.
Compreender o belo é recusar o belo; bem compreendido, e recusado, o belo revela ser o poder que se escondeu num mistério para ser mais poder. A arte compreende-se, quando se rejeita, como promessa do que não era. O incidente que vai ser lição é curioso. Ao agarrar um dos seus pela cabeça, o líder acaba por ficar com esta na mão. Apesar de o que aconteceu ser extremo pelo corte, a cabeça, que o não sente, continua a fixar os foguetes de lágrimas, infinitamente apaziguada e siderada pelo belo. O chefe olha para ela, e depois para o que ela não consegue deixar de continuar olhando. A rejeição é brutal e a acção consubstancia um desprezo. A cabeça é atirada para a valeta, como uma coisa abjectamente simbiótica da Coisa Materna. Depois, é esborrachada com a bota. Apagado o efeito e a causa no efeito, o chefe acabou de definir o seu «povo» (só há política por limitação da suposta felicidade infinita). Enche o peito de ar, inclina-se para trás, ergue a cabeça e lança o seu grito de desafio ao mistério ou ao nada.
Com alguma absolvição política, a tradução de Tarzan (Krig-Ha, Bandolo!) parece ser o instante passavelmente declarativo em que a arte é crítica da arte. A arte que é crítica da arte retém num nó de catástrofe a apparition, que é grito, e a espiritualização, que é a flor de fogo infamada e desafiada – o transcendente, que é escrita do paraíso, e a sucata histórica, que é imagem de Tarzan. A reposição da mentira da arte assinala o começo da acção (pois até aí reagia-se), que consiste na deslocação da acção para começo. Decisão na ignorância, mas porventura na esperança, a acção torna possível e faz acontecer. Assim os «fétidos», que sempre estacaram diante da água, eliminam o impossível, atravessam, atacam a cidade dos humanos e desencadeiam uma revolução que põe fim aos privilégios.
O subtexto «marxista» é notório. A recusa do céu conduz à herança da terra. Todavia, se o povo dos humanos parece ir fundar uma comunidade urbana assente sobre a partilha igualitária dos bens, os «fétidos» que foram os seus libertadores inintencionais acedem a uma outra condição. Estes descendentes de Caim serão nómadas; vaguearão sobre a terra sem lugar realmente seu; serão indiferentes às noções de propriedade. E são agora festa cívica e 4th of july os foguetes que surgem no céu enquanto os minutemen sobreviventes partem para o Canadá.»



O ensaio encontra-se aqui na íntegra, e intitula-se, já agora, «Estética, política: os mortos-vivos».

 


Sem comentários:

Enviar um comentário