A poesia de José Manuel Teixeira da Silva associa-se por
vezes a alguma circunstância de vida, não desembocando todavia em excurso
biográfico, para além de se confrontar com outras artes, em particular a
música, a fotografia e a pintura. É uma poesia que sabe da emancipação da
contingência (Lindeza Diogo): não só a vida pode conter matéria para reflexão
poética como a tradição das artes é manancial à disposição, potenciador de
exercícios ecfrásticos pautados pela errância. Música de anónimo põe especial cuidado na música dos seus versos –
seria fastidioso enumerar as aliterações, as assonâncias, as repetições
anafóricas ou os assíndetos. Ainda a propósito de retórica, na primeira parte
da obra a linguagem é mais elíptica. Revelo que a minha primeira intuição foi apor
o título desta obra a Música de câmara
de James Joyce – donde divisaria o recurso ao clássico topos da falsa modéstia – antes de saber da relação intertextual
com a composição anónima interpretada ao cravo por Ana Mafalda Castro. Enfim,
efabulações minhas... A poesia de José Manuel Teixeira da Silva testemunha a
sua passagem pelo mundo e diz por sobre isso do mundo que passa – e sem
declarada intenção mimética. Já noutro lugar tive a oportunidade de assinalar
que a lição de Sophia de Mello Breyner segundo a qual o poeta é um escutador se
aplica com veemência à sua poesia. Leio tal revisão de Fernando Pessoa como
aproximativa do poeta ao animal, ambos em permanente alerta, inquietos, partilhando
uma aturada (e aturdida) atenção, comuns ao caçador, ao coleccionador e à
sentinela – que pressente aquilo que é forte (Gonçalo M. Tavares). E sem querer
abusar da vossa paciência, porque de resto a teoria chega sempre atrasada
(Miguel Tamen), destacaria ainda que rastrear a perda como José Manuel Teixeira
da Silva o faz, sobretudo na primeira parte da obra, parece dar razão a
teóricos como Omar Calabrese, para quem vivemos uma época «neobarroca».
Depois de ter sobrevoado a obra do poeta, debruço-me sobre Música de anónimo. Para tanto, defini
três pontos coincidentes com as partes do livro.
1. a tudo quanto o dia acenderá
A primeira parte da obra é dominada por algumas isotopias:
luz, sombra, mar, verão. A imagem do mar persiste e domina ao longo de toda a
obra aliás – o mar compele e inquieta. Tanto o mar como a garota de Ipanema são
presenças inelutáveis, embora a garota seja de outra natureza, porquanto passe.
Mais até do que olhar o mar ou a garota, o poeta é por eles olhado, tais
imagens executam uma incisão, abrindo um espaço para além do visível. Contudo,
perseguimos paradoxalmente o que nos segue, como dizem os belíssimos versos do
poema «Passos perdidos». De alguma maneira, como afirma o historiador de arte
Georges Didi-Huberman em O que vemos, o
que nos olha, «ver é sentir que algo nos escapa inelutavelmente», quer
dizer, «ver é perder». Olhar para as coisas até que elas se afastem, perdendo-se.
Nesse afastamento das imagens averbam-se duas outras perdas: a do tempo – e,
mais funda ainda, a perda de si mesmo. Portanto, escreve-se no limiar do fim.
Não satisfaz declarar que o que vemos é apenas a casa ou o
mais extenso mar, como sucede no poema «Dar nas vistas», uma vez que o ser
humano é animal de sentido. A casa é a casa, o mar é o mar: o consolo da
tautologia, para além de nada explicativo, recusa o repto das imagens. Contrasta-se
na primeira parte da obra a transitoriedade da beleza da garota com a incandescência
pouco humana do mar. «Em chamas», acrescenta um verso do primeiro poema. Este
mar de chamas diz por um lado da canícula que se pode experienciar na praia e,
por outro, do inferno vivido para lá dela e todavia sentido por quem nela está.
Em todo o caso, fala-se de um vapor de estio tão excessivo que aproxima da
morte, prosseguindo-se até à aparição da noite como fundo negro para a luz
infernal das chamas. Esta incandescência transladar-se-á no segundo poema para
o silêncio, uma outra luz por sobre os banhos de sol. Só luz e silêncio e
alegria, breve como toda (Vergílio Ferreira), pela repetição de uma estação
após outra. «Somos crianças feitas para grandes férias», digo, rememorando Ruy
Belo. Pela luz, pelo silêncio e pela alegria o elementar desejo funciona, porém
sob ameaça das sombras, da despedida do verão, do tempo que ainda não passou,
da antecipação do fim, no que convoco novamente Ruy Belo e a sua demanda pela
autêntica estação, consequente do melancólico desajuste. No corpo tatua-se esta
passagem do tempo e apesar há dias em que se anda nas nuvens, entusiasmado por
dentro do tempo inesgotável. Na ardência dos «extremos lugares» reencontra-se
os passos perdidos da garota, desta ou doutra fantasia, porque tudo são
«regressos, partidas», imagens que fluem e refluem como o mar. Após a partida
das imagens, somos olhados pela perda, pelo vazio que fica, da qual recobramos
diferentes quando regressa essa garota, esse verão, esse mar, essa luz, também
já eles diferentes. Os regressos e as partidas ensinam-nos a alteridade, pois,
essa obsidiante presença do que falha, os jazentes cacos da loiça, as gavetas
empenadas, a quietação das águas. Em contraste com esta suspensão temporal, revoam
folhas de outro tempo que já não sabemos e desfazem-se as nuvens, claro, só faltavam
as nuvens, que visitam amiúde os poemas de José Manuel Teixeira da Silva. Folhas
e nuvens passam – como nós passamos, retocando as pegadas no jardim, cortando a
relva, limpando alguns caminhos. No poema de Baudelaire de Spleen de Paris, o viajante despreza o mundano e o seu ouro, ignora
a família e a pátria – e diz amar somente as nuvens. Somos sujeitos passentos
por condição – passamos tempo (e retenho do verbo passar a associação com pathos, sofrimento, autorizada pela
etimologia). Passar tempo não consiste contudo nos inanes passatempos, negação
inglória da nossa mortalidade. E embora não saibamos o que queiram dizer as
palavras aparecer, desaparecer e deslumbrar, saberemos pelo menos que todas as
palavras deslumbram, e fazem aparecer e desaparecer.
2. vozes conjugadas na distância
E apesar de tudo, somente as palavras permitem pensar a
distância em relação ao mundo e ao outro. A segunda parte de Música de anónimo parece render
homenagem às pessoas que o poeta conhece ou conheceu. Encetar um diálogo é de
alguma maneira olhar o outro; a leitura – esta, por exemplo – não é outra coisa
senão fazer observações. Dialogar e ler são ainda travessias – do olhar, do
rosto, das mãos. Mas escrever também, como finalmente veremos na parte final da
obra. Centro a minha atenção nos versos do soneto «O quarto dos brinquedos»:
Os meninos seguem na ventania dos quartos
não sabem apenas brincar, como lhes pedem
Onde estamos, ao acordar de coração no breu
que tempo, que vida, que caminho para a mãe?
Uma injunção a que, constato, nenhum menino corresponde – «apenas
brincar». Os pais gostariam que eles apenas brincassem, mas momentos de
auto-absorção são raros nas crianças. Ao contrário, os meninos seguem, descobrem
aos poucos que o caminho para a mãe, para o breu, para a noite da continuidade,
não existe. Ou melhor, existirão sempre substitutos do corpo da mãe, de que o
soneto dará conta. Imagens, objectos e hipóteses de sentido (Jacques Lacan) – é
tudo quanto substituirá o corpo da mãe. Gostariam os pais que eles brincassem,
concedendo-lhes o desafogo para, por exemplo, escrever poemas ou esquecer
livros. Todavia as crianças são de uma ingénua intransigência quando nos levam
para o seu mundo, escrevendo o plot maravilhoso
dos dias. Pergunto-me apenas se o poeta não fará o mesmo: no seu quarto, no seu
escritório, escrevendo rodeado por todos os livros que colecciona como a
criança arrebanha brinquedos, arromba-nos as portas para respirarmos mais
fundo.
A pretexto de um livro de Virginia Woolf esquecido numa
praia, avançar-se-á por metalepse para um reflexão sobre todas as leituras que
esquecemos. O que sobra na memória das nossas leituras ao fim de algum tempo? E
nos nossos gestos, então? Alijamos essa carga algures, soterrada por um dia e
outro, tempo sobre tempo ao lado de corpos também eles desabados. Neste ponto
parece-me que o livro se debruça sobre o exercício lacunar e elíptico da
memória. Cito a segunda estrofe do poema «Sem título»:
Como chamar
o irradiante esquecimento
sem nos afeiçoarmos
a precisas, minuciosas traições
diligente ignorância?
Com que palavras falar do passado, dos amores passados em particular,
sobretudo quando a nossa diligente ignorância tratou de o turvar? A nossa
memória é pouco fidedigna, assim como o é a mais completa biografia.
Acreditamos poder contar a nossa vida – e até a de outros – de uma forma mais
ou menos precisa, mas quando decidimos fazê-lo apercebemo-nos de que ela está
povoada de zonas de sombra e que foi feita de caminhos não percorridos. O que
somos resulta da soma imprecisa do que vivemos mais o que não vivemos. Mas
existe uma porta de saída para este impasse: a imaginação, ou, nos termos do mesmo
poema, «o empenho das imagens». É disso que trata o terceiro ponto.
3. coisas de atenta surdez
Considero esta «atenta surdez» também a do poeta, e não
apenas a de Messiaen. Parece-me uma fórmula justa para dizer da tenacidade que contraria
a limitação humana. Como até deus é um problema gramatical (Nietzsche), nada transcende
a linguagem, somente interpretamos (como podemos). Do ponto de vista didáctico,
nada seria mais estimulante, embora seja difícil contrariar o secular respaldo
essencialista. Nos descaminhos da retórica, toda a interpretação tem o seu quê
de efabulada. Parece que se concretizou a cultura mundial idealizada por T. S. Eliot
em Notas para uma definição da cultura.
É a partir desse fundo de latência (disponibilizado em bibliotecas, livrarias,
museus, internet, enciclopédias...) que o poeta cria o seu privado museu
imaginário (Malraux). Caminha por ele e convida-nos a entrar, não sendo raro
que o leitor se transvie nesta sucessão de links, de informação biográfica dos
artistas ou de notação estética, tudo cerzido pela imaginação. Lidamos pois com
a potência arquivística da nossa era, associada a uma surdez por demais atenta
do poeta. O poema converte-se em transdutor de todas as artes. Interpretamos
Mahler como interpretamos a loiça jazente, o mundo é concatenação de signos. Diviso
nestes poemas finais o recurso à hipotipose, isto é, a sucessivas enumerações
enérgicas – uma reacção possível à indizibilidade (Umberto Eco). Lembre-se que
na segunda parte do livro a indizibilidade se suspendia em interrogação. Em
suma: os poemas da última parte são respostas, influenciadas pela cultura e
pela imaginação do poeta, a experiências estéticas. Constituem, de alguma
maneira, investigações em verso sobre obras de arte. Nem ver nem ouvir são actividades
puramente orgânicas, claro está, e por isso são inquietas. Em consequência, a
vida transforma-se numa obra crítica. Tanto da música de Schubert como do resto,
constata-se no último poema, «pouco sabemos», o que profliga todo o assomo de
optimismo hermenêutico. Em consequência, é tarefa nossa, diz o poema «Cadernos
de esboços de J. W. Turner», recomeçar o mundo a cada vez.
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